Os músicos e instrumentistas podem oferecer uma grande contribuição para tornar os rituais litúrgicos mais condizentes com o mistério a ser celebrado. Através de sua atividade criativa, os músicos com sua arte de tocar ou compor ajudam o povo celebrante a entrar no mistério da salvação. Eles dão forma sonora aos momentos rituais que a comunidade celebra e têm a responsabilidade de cuidar da música, da palavra feito canção, do ritmo que envolve a comunidade num encontro único e espiritual que transcende a sua natureza. É o som e a palavra tornando-se um só movimento, um revestindo o outro e dando sentido à ação litúrgica. Assim, concordamos com Gelineau quando diz que: “o som se estiver só, escapa à inteligência discursiva. No culto cristão a pura execução de um instrumento não constitui jamais um rito propriamente dito.”80 É preciso que as palavras sejam envolvidas por uma melodia, um ritmo, uma interpretação e uma execução certa, no momento certo, de uma maneira que corresponda exatamente à mensagem do rito celebrado.
A Carta de São Paulo aos Coríntios“81 nos ajuda a perceber que tudo que se passar numa assembleia litúrgica deve visar a sua edificação. Assim, a música é um dos elementos a serviço da revelação e da profecia. Um canto de ação de graças pode ser muito bonito, mas se não serve para edificar a comunidade não tem utilidade naquela celebração. Se os músicos e instrumentistas não tiverem a compreensão da finalidade litúrgica da sua missão na celebração, estariam edificando a si próprios, e esta não é a finalidade deste ministério. Os carismas e dons são úteis quando colocados para o crescimento da comunidade, e não quando servem de ostentação de quem os recebeu. O apóstolo Paulo nos dá uma dica valiosa para que possamos cumprir essa função ministerial com grandeza: “salmodiai com o espírito, mas salmodiai também com a in-teligência.”82
Os santos padres da Igreja serviram-se também deste texto para afirmar que o canto litúrgico não fique apenas na mera sonoridade da voz externa, mas seja uma “expressão espiritual do cristão diante do Senhor”. A utilização instrumental na liturgia foi evoluindo conforme a compreensão de sua utilidade e se fundamenta principalmente no fato de que podem tornar o canto, ou tecnicamente mais fácil ou espiritualmente mais eficaz. E assim, muitas foram as reflexões acerca da sua utilização: “como o canto tem de ouvir-se sempre, o órgão e os instrumentos devem simplesmente sustentá-lo, e nunca encobri-lo”. João Paulo II também mostra preocupação e ressalva na utilização de instrumentos na liturgia: “É preciso, porém, vigiar a fim de que os instrumentos sejam aptos para o uso sacro, correspondam à dignidade do templo, possam sustentar o canto dos fiéis e favoreçam a sua edificação.”83
O Concilio Vaticano II abriu a possibilidade do uso de instrumentos musicais na liturgia, segundo o parecer e com o consentimento da autoridade territorial competente.“84 Esta abertura trouxe para os formadores diocesanos e paroquiais uma responsabilidade de formação para que estes músicos se preparem para o uso adequado destes instrumentos e exerçam de maneira digna a sua função ministerial.
Em muitos casos, há um grande desequilíbrio na relação dos músicos com a assembleia, com os cantores e grupos que se reúnem para preparar a celebração. A compreensão de atuação na liturgia dos músicos e instrumentistas se restringe, muitas vezes, ao ato de “se apresentar”, de “mostrar seus talentos” sem nenhuma comunhão eclesial e tão pouco com o grupo e a assembleia celebrante. Este desconhecimento e falta de comprometimento gera muitas desavenças, pois, entre eles, existem aqueles que foram convidados apenas para “tocar na missa” e não para fazer parte de uma comunidade que reza junto e que se prepara junto também. Desconhecem a grande importância que tem a sua missão de sustentar o canto da assembleia, dar um caráter festivo à ação litúrgica e ainda ressaltar a sacramentalidade da voz.
Fazer parte da assembleia é integrar-se no primeiro serviço, a primeira liturgia que Deus realizou para nós, na redenção realizada por Cristo. Os que estão envolvidos em uma celebração, seja exercendo uma função ministerial ou não, são seres celebrantes, povo convocado, assembleia dos chamados. Participar, tomar parte, é integrar-se no corpo de Cristo, comunidade dos fiéis, para partilhar a vida de cada dia onde o Verbo se encarna, ouvir a Palavra que transforma, receber o seu Espírito que nos torna suas testemunhas e o seu Corpo que alimenta nossa comunhão. E todo serviço da Igreja deve tornar-se parte da missão de Cristo, vivendo o compromisso com seu Reino para cantar o canto novo, como diz Sto. Agostinho: “É, pois, pelo canto novo que devemos reconhecer o que é a vida nova. Tudo isso pertence ao mesmo Reino: o homem novo, o canto novo, a aliança nova”. O canto novo é a expressão da comunidade que busca o Reino de Deus, a comunhão com Cristo no serviço aos irmãos. Agostinho continua:
“Ouvi-me, ou melhor, ouvi através do meu convite: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Já estou cantando, respondes. Tu cantas, cantas bem, estou escutando. Mas oxalá a tua vida não dê testemunho contra tuas palavras”85.
Também o músico-instrumentista deve dar testemunho profético em sua ação ministerial, pois este serviço mal executado impede a ação do “Espirito que canta em nós” na assembleia celebrante. Na liturgia, “o discípulo realiza o mais íntimo encontro com seu Senhor e dela recebe a motivação e a força máximas para a sua missão na Igreja e no mundo.”
Todos somos chamados a nos tornar “raça eleita, sacerdócio régio, nação santa, povo adquirido por Deus, para proclamar as obras maravilhosas daquele que chamou vocês das trevas para a sua luz maravilhosa.”86 O canto do povo é a voz principal no diálogo da esposa Igreja com seu esposo e Senhor. A utilização dos instrumentos deve ajudar a destacar este diálogo que acontece na Liturgia. O Senhor nos fala na Palavra proclamada, nós respondemos nas orações, nos salmos e cantos sem perder o foco, que é a participação da assembleia.
Após o Concilio Vaticano II, a Igreja se preocupou em criar possibilidades para fazer acontecer a grande revelação do Concilio: permitir ao povo reunido compreender a Palavra de Deus e a prece de ação de graças pela maravilha do mistério pascal. Surgiram então muitos compositores e grupos musicais para atender à natureza da música ritual que, a partir do Concílio, passou a fazer parte da liturgia. Formaram-se, assim, muitos grupos, bandas e ministérios de música nas diversas comunidades que, com seu jeito próprio, se colocaram nesta missão. Porém, o maior limite dessa participação é que muitos destes grupos se dispuseram a tocar e cantar “na liturgia” e não “a liturgia”, se “apropriaram” do espaço litúrgico, sem uma participação efetiva na comunidade e, aos poucos, foram incorporando nesta atuação repertórios musicais e comportamentos que não estavam cumprindo com o objetivo principal do rito celebrado. Assim, ao longo dos anos muitos abusos foram acontecendo. Muitos se apresentaram como bandas ou ministérios de música, mas poucos se identificaram como animadores do canto da assembleia. Ser ministro da música muitas vezes é compreendido como quem exerce uma função “para” a assembleia e não se considera “parte” dela e, se assim for, há um grande perigo de transformar a celebração em um “show”.
Caetana Cecília | Pe. Jair Costa
Comissão Diocesana de Liturgia / Música Litúrgica
80 GELINEAU, 1968, p.189
81 (1Cor 14,14-19.26)
82 1Cor 14,15
83 DOCUMENTOS…2017, p. 192
84 (cf. SC, n.120).
85 LITURGIA DAS HORAS, 2000, Sermão 34
86 1Pd 2, 9