SÃO PAULO - BRASIL

“O Senhor fez em mim maravilhas.” (Lc 1,49)

SÃO PAULO - BRASIL

"O Senhor fez em mim maravilhas." (Lc 1,49)

Categorias
Artigos Voz do Pastor

‘‘Pai Nosso que estais nos Céus’’ 2

Faço algumas últimas considerações sobre algumas exigências para poder rezar o Pai Nosso.

Como Jesus, elevar os olhos aos céus. Não fisicamente, pois os céus não estão dentro do nosso espaço físico-temporal. Estamos diante do Deus onipresente e onisciente. Aquele que é perfeito e misericordioso. (cf Mt 5 e Lc 6). Não podemos sequer comparar o Pai que está nos céus com o nosso pai terreno. Pode ser até que muitos de nós possamos ter experiências traumáticas em relação ao nosso pai terreno, o que pode provocar uma imagem distorcida  do Pai que está nos céus. E, assim, desta maneira, duvidarmos do amor do Pai e rezarmos desacreditados do amor e  ouvintes da catequese do pai da mentira, que fez a humanidade não acreditar no amor e que em tantas circunstâncias diante da nossa história, nos faz duvidar que o amor do Pai esteja presente: “Jesus respondeu: Se Deus fosse vosso pai, certamente  me amaríeis, pois é da parte de Deus que eu saí e vim. Eu não vim de mim mesmo; foi Deus quem me enviou. Por que não entendeis minha fala? É porque não sois capazes de escutar minha palavra. Vós tendes por pai o diabo, e quereis fazer o que o vosso pai deseja. Ele era homicida desde o princípio  e não permaneceu na verdade, porque nele não há verdade. Quando ele fala mentira, fala do que é próprio dele, pois ele é mentiroso e pai da mentira.” (Jo 8, 42-44) Portanto, elevar os olhos aos céus é ter uma atitude interior de total entrega e confiança no amor do Pai.

Erguer mãos puras. “Quero, pois, que, em toda parte, os homens orem, erguendo mãos santas, sem ira nem contenda.” (1Tm 2,8) O Pai que está nos céus, não é o Deus da vingança, que faz a história mover-se pela economia do ódio. Em Mt 5,21-48, temos os vários “ouvistes o que foi dito…eu porém vos digo”. É Jesus mostrando o pleno cumprimento da Lei, não a abolindo. O versículo 48 conclui esta seção dizendo: “Sede, portanto, perfeitos como vosso Pai celeste é perfeito” e Lucas em 6,36, conclui os mesmos ensinamentos, traduzindo e esclarecendo a perfeição com a misericórdia: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso”.

Erguer mãos puras, portanto, significa aceitar o mistério da Cruz de Jesus e estar concorde que o amor nesta dimensão de Cruz traduz a perfeição e a misericórdia do Pai. Até o gesto de erguer as mãos para a oração do Pai Nosso faz com que nosso corpo assuma a forma de cruz e mostrar as palmas das mãos, rezando como o Senhor nos ensinou, deve expressar, ao menos, o desejo de não termos ódio no coração e que chamamos a Deus de Pai, no mesmo espírito do amor de Jesus, erguendo mãos puras.  Que a intensidade deste desejo seja realmente sincera, pois nem sempre nossas mãos estão puras!

O evangelista Mateus várias vezes usa as expressões “o Pai que está no céus”, “vosso Pai celeste”. Parece querer ensinar que a comunidade dos discípulos de Jesus é a comunidade do Pai que está nos céus. Somente no capítulo 18 aparece  sete vezes a expressão. No término do ensino do Pai Nosso em Mateus, aparece a condição para que oração do Senhor seja, digamos, “bem rezada: “Com efeito, se perdoardes as faltas aos outros, também vos perdoará o vosso Pai que está nos céus. Se vós, porém, não perdoardes aos outros, vosso Pai também não perdoará as vossas faltas.” (Mt 6, 14-15)

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O.Cist.

Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

‘‘Pai Nosso que estais nos Céus’’

Assim falou Jesus. Então levantando os olhos ao céu disse: “Pai, chegou a hora. Glorifica teu filho para que teu filho te glorifique, assim como lhe deste autoridade sobre todo ser humano, para que conceda a vida eterna a todos que lhe deste. Ora, a vida eterna é esta: que conheçam a ti, o Deus único e verdadeiro e àquele que tu enviaste, Jesus Cristo.” (Jo 17,1-3)

O apóstolo e evangelista São João, nesse lindo capítulo 17 do seu evangelho, revela-nos, na chamada oração sacerdotal, a intimidade, confiança e entrega de Jesus para com o Pai (Abbá, papaizinho). Jesus ergue os olhos aos céus. Ele tem a intimidade de penetrar no aconchego do Pai. Trata-se de um olhar de confiança e entrega. Mesmo na hora cruciante da sua Paixão, Ele não duvida da sua missão e da força da sua entrega. Sabe que a sua glória e a glória do Pai são a mesma: toda a humanidade tem acesso à vida eterna. Conhecendo (experimentando) o amor do Pai e do Filho, temos a mesma intimidade, pois experimenta-se a vida eterna. Tem vida eterna quem descobre o poder do Amor do Filho que se manifestou maravilhosamente no escândalo da Cruz.

A filiação divina de Jesus, da intimidade que Ele tem com o Pai, ele quer que nos tornemos partícipes.  Ele quer compartilhar com todos os discípulos: “Eu lhes dei a glória que tu me deste, para que eles sejam um, como nós somos um, eu neles e tu em mim. Sejam consumados na unidade, e o mundo reconheça que tu me enviaste e os amaste como amaste a mim.” (Jo 17,22-23).

Contudo, o penetrar nesta intimidade do Pai exige que tenhamos o conhecimento do Filho para contemplarmos a intimidade do Pai. “Há tanto tempo estou convosco e tu não me conheces, Filipe? Quem me vê, vê o Pai.” (Jo 14,9). Quem é o Filho?  É Aquele que Deus, após ter falado de muitos modos no passado, “nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do seu Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo. Ele é o esplendor da glória do Pai, a expressão do seu ser. Ele sustenta todas as coisas com sua palavra poderosa.” (Hb 1,2-3). Este Filho é o Verbo (Lógos) incomensurável. Ele é a Sabedoria de Deus. No entanto, o Verbo (Lógos) se fez carne e habitou entre nós. (cf. Jo 1,14). Para que pudéssemos conhecê-lo, neste seu fazer-se carne, assumiu toda a debilidade da natureza humana, exceto o pecado. Viveu o mais profundo e verdadeiro esvaziamento de si mesmo (kênosis) e por isso Ele e com Ele a natureza humana entrou na glória da eternidade. De fato, na morte de Jesus o véu do templo que impedia a todos de entrar em contato com Deus rasgou-se. Pelo poder da morte, morte de Cruz de Jesus, todos têm acesso ao Pai. (cf Mt 27,51) E o Cristo que assumiu a nossa frágil natureza humana é exaltado e diante dele todos os joelhos se dobram. “…não considerou um privilégio ser igual a Deus, mas esvaziou-se, assumindo a forma de servo e tornando-se semelhante ao ser humano…humilhou-se, fazendo-se obediente até a morte – e morte de Cruz! Por isso Deus o exaltou acima de tudo e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que, ao Nome de Jesus, todo joelho se dobre no céu, na terra e abaixo da terra, e toda língua confesse: Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai.” (Fl 2,6-11)

Este é o Filho que precisamos conhecer (experimentar) para que a nossa oração do Pai Nosso tenha toda a sua intensidade. Somos filhos no Filho. Somente estando nele podemos chamar a Deus de Pai.

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O. Cist.

Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

A quem ousamos chamar de Pai?

Em nossa última reflexão, onde falávamos sobre o Pai Nosso, tema central da oração neste ano em que nos preparamos para o Ano Santo de 2025, refletíamos sobre a nossa grandeza de filhos de Deus e como que, em Cristo, podemos chamar a Deus de Pai. Entretanto, unido a esta grandeza está a dificuldade de ouvirmos o “outro pai”, o pai da mentira. Em Jo 8,43-45, Jesus falando aos que haviam acreditado nele (cf. Jo 8,31), diz: “Por que não entendeis a minha fala? É porque não sois capazes de escutar minha palavra. Vós tendes por pai o diabo e quereis fazer o que vosso pai deseja. Ele era homicida desde o princípio e não permaneceu na verdade. Quando ele fala mentira, fala do que é próprio dele, pois ele é mentiroso e pai da mentira. Em mim, ao contrário, não credes, porque falo a verdade.”

Impressionante! Jesus não fala aos que diziam não acreditar nele, mas àqueles que diziam ter crido nele. Então, esta Palavra toca a nós sempre muito de perto, pois professamos acreditar em Jesus. E, tantas vezes, como testemunham os nossos pecados, realizamos as obras do pai da mentira. Isso nos impede, tantas vezes, de chamar a Deus de Pai.

Na última reflexão tivemos a ajuda de São Cipriano de Cartago na sua bela exposição sobre a Oração do Senhor. Desta vez quero buscar a ajuda de um dos grandes Santos Padres Capadócios do século IV, São Gregório de Nissa, através da sua homilia sobre o Pai Nosso: Que coração devemos ter para esta palavra “Pai”! É evidente que nenhum homem sensato se permitirá usar o vocábulo “pai” se reconhece que não se assemelha em nada a Ele…Se alguém que aspira à purificação entra em si mesmo e descobre a própria consciência repleta de vícios e imundície e, apesar de se reconhecer pecador, diz que tem tal parentesco com Deus, que pode chamar de “Pai”  Áquele que é a pureza, sem se purificar previamente de suas próprias prevaricações, tal homem será um presunçoso e um blasfemo, porque chama a Deus de pai de sua própria iniquidade, Porque ao nome de pai está atribuindo a responsabilidade da sua perversão…Se te apegas ao dinheiro, se te deixas arrastar pela sedução do mundo, se buscas a estima dos homens, se te deixas levar pela concupiscência da carne e depois rezas a oração do Pai Nosso, o que pensará Aquele que escruta teu coração enquanto escuta tuas palavras?…É perigoso, pois, antes de se ter corrigido a própria vida, recitar esta oração e ter a OUSADIA de chamar a Deus: Pai.”  (S. Gregório de Nissa, II Homilia sobre a Oração do Senhor)

Esta “periculosidade” no rezar o Pai Nosso é patente em nossas vidas. Somos pecadores. No entanto, em Jesus Cristo estão sempre abertas as portas da conversão e da vida nova. Jesus Cristo é o Filho de Deus. Somente NELE, aderindo ao seu Evangelho é que podemos dizer Pai Nosso. Somos filhos no Filho. A fórmula litúrgica do convite à oração do Pai Nosso fala sempre em ousadia, pois no amor de Cristo temos sempre acesso ao Pai: “Obedientes à palavra do Salvador e formados por seu divino ensinamento OUSAMOS dizer.” “Guiados pelo Espírito de Jesus e iluminados pela sabedoria do Evangelho OUSAMOS dizer.

Sejamos ousados para renunciar ao pai da mentira. Sejamos ousados, mesmo com a indignidade a que nos submetem os nossos pecados, a estarmos diante do Pai por Cristo e em Cristo. Em verdadeiro espírito de conversão sejamos sempre ousados em dizer PAI NOSSO.

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O. Cist.

Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

Ter olhos fixos em Jesus

No mês passado refletíamos sobre como não é possível rezar como convém sem termos os olhos fixos em Jesus “autor e realizador de nossa fé”. Ter olhos fixos em Jesus equivale à obediência da fé. Não é possível a oração verdadeiramente cristã sem a fé.

Os discípulos de Jesus querem que Ele lhes ensine a rezar (cf. Lc 11,1). Jesus ensina a oração do Pai Nosso que não está, absolutamente, desvinculada da vida de fé.

De fato, para chamarmos a Deus de Pai são exigidas algumas disposições interiores que refletem o nosso modo de viver.

Não podemos chamar a Deus de Pai se não estivermos em Cristo. Ele é o Filho Único do Pai. Nós só podemos ser filhos de Deus no Filho. Em Cristo tornamo-nos filhos adotivos. O Batismo, somente o Batismo, nos faz filhos de Deus, pois por este Sacramento somos enxertados no Cristo e nos tornamos criaturas novas. “O homem novo, renascido e restituído a Deus pela sua graça, diz, logo de início, Pai, porque já começou a ser filho...Devemos, irmãos diletíssimos, considerar e entender que não só chamamos de Pai aquele que está nos céus, mas que apontamos e dizemos Pai nosso, isto é, (pai) daqueles que creem, daqueles que foram santificados por ele mesmo e que, restaurados pelo nascimento da graça espiritual, começaram a ser filhos de Deus.” (cf São Cipriano de Cartago, Da Oração do Senhor 9-10)

É evidente que o foi dito acima exige a fé, pois a consciência da graça batismal e a sua atividade em nós exige a nossa total adesão. Por outro lado, é também evidente, que não basta ter recebido o Sacramento que nos faz filhos de Deus, mas é preciso viver de acordo com a graça recebida. Isso também é condição para podermos chamar a Deus de Pai. “Como é grande a indulgência do Senhor! Ele nos envolve com a abundância do seu favor e da sua bondade. A ponto de querer que, ao elevarmos a Deus nossa oração, chamemos Deus de Pai: de modo que, se dizermos que Deus é Pai, precisamos agir como filhos de Deus, para que, do mesmo modo que nos alegramos de Deus Pai, ele também se alegre de nós. Vivamos, pois, como templos de Deus, para que se note que ele habita em nós. Que nossa ação não seja indigna do Espírito, para que nós, que começamos a ser celestes e espirituais, não pensemos e pratiquemos o que não é celeste, nem espiritual… O bem-aventurado apóstolo diz na sua carta: ‘Não sois vossos. Fostes comprados por um grande preço. Glorificai a Deus e levai-o no vosso corpo. (1Cor 6,19-20) (cf. São Cipriano de Cartago, Da Oração do Senhor 11)

Aquele que está em Cristo chama a Deus de Pai (Abbá, paizinho), com toda a confiança filial, não duvidando do amor e já renunciou ao pai da mentira, mentiroso desde o início, pois faz o homem, imagem de Deus, desacreditar do amor. (cf Jo 8,39-47) Para verdadeiramente chamar a Deus de Pai, precisamos renunciar ao demônio, pai da mentira.

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O.Cist.

Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

‘‘A Esperança não decepciona’’ É o tema da Bula do Papa para 2025

No último dia 09 de maio Papa Francisco tornou pública a Bula “Spes non confundit” (A esperança não decepciona), com a qual convoca o Jubileu Ordinário de 2025 (Ano Santo): Peregrinos da Esperança.

O título da Bula é tirado do texto de Rm 5,1-11, onde a esperança pressupõe a fé, pois, diz Paulo:

“justificados pela fé estamos em paz com Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, por quem tivemos acesso, pela fé, a esta graça, na qual estamos firmes e nos gloriamos na esperança.” (Rm 5,1-2)

A fé é como a porta de entrada para se possuir a esperança que não decepciona. Afinal,

a esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.”  (Rm 5,5),

e Deus concede o Espírito Santo aos que lhe obedecem (cf At 5,32) e esta obediência, é a obediência da fé.

Inspirados nesta Bula pontifícia podemos continuar falando da oração na perspectiva de que falávamos no mês passado: a vivência da fé. Inspiremo-nos em Mt 14,22-33.

Os discípulos alegres e festivos pela multiplicação dos pães (cf  Mt 14,13-21) são forçados por Jesus a entrarem na barca e fazer a travessia (cf. Mt 14,22). A vida cristã, a vida do discípulo de Jesus não é um deter-se na festa, mas no combate da fé, no entrar na morte (da qual as águas são um símbolo). Jesus apresenta-se aos discípulos caminhando sobre as águas no meio da tempestade (cf Mt 14,25).  Jesus é vencedor sobre o mal e a morte. Os discípulos amedrontados (sem fé) dizem que é um fantasma, pois somente um fantasma pode estar no meio da morte (sem esperança de vida eterna). Jesus identifica-se como Aquele que é – SOU EU -, convidando-os à obediência da fé (a não ter medo) e o apóstolo Pedro quer fazer a experiência de caminhar sobre as águas, de caminhar por cima da morte, de entrar na morte experimentar a vida eterna (cf. Mt 14,28). De fato, Pedro caminha sobre as águas e vai ao encontro de Jesus (cf Mt 14,29). No entanto, ao se entregar à preocupação dos acontecimentos de morte (cf. Mt 14,30), começa a afundar. É que ao entregar-se ao medo da morte, deixa de olhar para Jesus e olha para si mesmo. Enquanto mantinha o olhar em Jesus caminhava sobre as águas. Ao deixar de viver a obediência da fé, deixa também de ter a esperança e entra no desespero.

Não deixemos de pedir em nossa oração que o Senhor nos conceda hoje ter a vida eterna e não afundarmos nos acontecimentos de morte. No entanto, devemos ter sempre os olhos fixos no Senhor Jesus, para deixarmo-nos conduzir por sua Palavra e vive-la no cotidiano da nossa existência. A vida eterna é para hoje. A esperança que não decepciona nos faz viver hoje e caminhar sobre a morte.

“…corramos com perseverança para o certame que nos é proposto, com os olhos fixos naquele que é o autor e realizador da fé, Jesus…” (Hb 12,1-2)

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O. Cist.

Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

A Fé em Deus por meio da Oração

No último número da nossa revista, meditávamos nesta coluna sobre o ensinamento de Jesus da necessidade de orar sempre, conforme Lc 18-1-8. Minha reflexão terminava dizendo: “A justiça contra o adversário foi realizada. É preciso, agora, acolhermos isso de coração aberto e revestirmo-nos desta justiça da Cruz. E aqui está o motivo por que esta parábola termina de forma tão enigmática: “…O Filho do homem, porém, quando vier, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8).

A oração não é um modo mágico de entrar em contato com Deus ou de magicamente experimentar a sua presença. Ela, de um lado, pressupõe a fé. A fé não é um simples acreditar e basta. A fé é resposta à Palavra de Deus. Deus nos faz uma proposta ao nos fazer justiça através do seu Filho Jesus Cristo. A nossa adesão de mente, coração e obras concretas é a nossa resposta. Isso é a vivência da fé.

Esta fé, além de ser vivida por nós, exige que ela seja transmitida às novas gerações. A vivência da fé é missionária. Certamente o Filho do Homem irá voltar e, ao voltar, encontrará uma última geração sobre esta terra que deverá ter a herança da fé. No entanto, não há somente o Juízo Final, mas há também o juízo particular, quando estaremos diante do Senhor, cada um de nós, no “dia” da nossa morte. Encontrará o Filho do homem em nós a fé acompanhada de obras concretas?

Se, de um lado, a oração pressupõe a fé, de outro lado, a fé precisa ser sempre sustentada pela oração. Encontramos nos evangelhos o próprio Senhor Jesus tantas vezes em oração. Os evangelistas colocam várias vezes nos lábios de Jesus a oração dos salmos. A Igreja desde os seus primórdios aparece em atitude orante e privilegia os momentos de oração. Tomemos alguns exemplos significativos dos Atos dos Apóstolos: “Todos eles perseveravam na oração em comum, junto com algumas mulheres e Maria, mãe de Jesus e com os irmãos dele.” (At 1,14) “Pedro e João subiam ao templo para a oração da hora nona.” (At 3,1). A oração que nos coloca na busca da sintonia da vontade de Deus, é nossa herança da tradição judaica. Jesus confirma e ensina esta tradição aos seus discípulos, principalmente na oração do Pai Nosso.

A espiritualidade do “orai sem cessar” recomendada por Paulo está presente na tradição do templo, na citação acima Pedro e João estão indo ao templo para a oração das quinze horas. A mística da oração incessante da tradição judaica, entra na tradição cristã principalmente através da Liturgia das Horas. Devido a tantos afazeres que temos, não temos possibilidade de viver incessantemente na oração. Através da Liturgia das Horas santificamos os vários momentos do nosso dia e em cada momento do nosso dia nos dispomos a entrar na vontade de Deus. Além disso a espiritualidade das horas nos coloca em sintonia com o Mistério Pascal de Cristo. De fato, o Ofício das Leituras (ou Vigílias), quando celebrado à noite ou pela madrugada, nos coloca em sintonia com a mãe de todas as Vigílias, a Vigília Pascal. A oração da manhã (Laudes), nos faz anunciar cada dia a ressurreição do Senhor. A oração das nove horas (terça) nos coloca na sintonia de Pentecostes. A oração das doze horas (sexta) nos coloca na sintonia do momento em que Jesus é pregado na cruz. A oração das quinze boras (nona) nos faz contemplar a morte do Senhor Jesus. A oração da tarde (vésperas) nos faz contemplar a luz que não se apaga, mesmo com o final do dia, Jesus Cristo. A oração da noite (Completas) nos faz numa atitude de fé entregarmos a nossa vida nas mãos de Deus, no sono diário que prenuncia o sono da morte e a plena visão do dia eterno. Exorta São Bento em sua Regra: “Como disse o profeta: sete vezes por dia cantei os vossos louvores…Ofereçamos, pois, nesses mesmos momentos os nossos louvores ao Criador pelas decisões de sua justiça…” (Cf. RB 16)

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O.Cist.

Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

A necessidade de orar sempre

Podemos identificar nos evangelhos duas passagens significativas nas quais Jesus insiste na necessidade da oração, como algo fundamental para a vida em Deus. Em Lc 18,1, “Jesus propôs uma parábola para mostrar-lhes a necessidade de orar sempre sem nunca desistir”. Algumas traduções trazem o verbo “inculcar” no lugar de mostrar. Parece mais forte e de acordo com o intuito da parábola. Em Mt 26,41 (e paralelos): “Vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O espírito, na verdade, está pronto, mas a carne é fraca.” Duas citações que se enquadram diante de situações extremas. Dentro do contexto da vigilância e parusía, como acontecimento da plenitude do Reino, o apóstolo Paulo diz “Orai sem cessar” (1Ts 5,17).

As duas citações dos evangelhos acima nos colocam em situação de combate. Podemos dizer, portanto, que a oração é uma arma de combate. Combate contra quem? Na parábola do evangelho de Lucas a “prece” insistente da viúva para o juiz iníquo é “Faze-me justiça contra o meu adversário” (Lc 18,3). Adversário nas Escrituras é principalmente Satanás. Aquele que acusa e arquiteta contra a obra de Deus (cf. Jó). No caso da viúva da parábola o adversário quer prejudicar uma viúva, parece querer roubar-lhe algo que lhe pertence e ela não tem como impedir. Somente o juiz pode lhe fazer justiça. Sem entrar em muitas argumentações podemos dizer que existe algo do qual o adversário quer nos privar e que nos pertence: o céu, a vida eterna, a verdadeira terra prometida.

Na agonia de Jesus no Getsêmani, Ele também vive um combate entre o céu que é seu desde toda a eternidade e a missão de entrega total à vontade do Pai que abre para todos a vida eterna.  O seu espírito está pronto, mas sente a fraqueza da carne, pois o “Verbo se fez carne” (Jo 1,14). Sem a oração, sem entrar na sintonia da vontade do Pai, não é possível vencer a debilidade da carne.

Podemos elencar muitas motivações para “orar sem cessar”, mas parece ser esta fundamental no ensinamento de Jesus: orar sem jamais esmorecer porque existe um adversário que nos quer “roubar” aquilo que Deus, desde toda a eternidade, destinou a nós em Cristo: sermos santos e imaculados diante d’Ele (cf Ef 1). Pode até parecer uma expressão piegas, mas é necessário rezar sempre para não perdermos o céu, a participação no Reino em sua plenitude.

O adversário, Satanás, o pai da mentira, engana-nos constantemente em nossa carne para duvidarmos do amor de Deus e buscarmos a realização da nossa vida e a felicidade nas coisas que o mundo oferece e têm verniz de felicidade. Deste modo, rezar é entrar todos os dias em combate contra as seduções do inimigo que constantemente nos arrasta para armadilhas fatais.

O mistério pascal que acabamos de celebrar nos proclama que Deus já fez justiça a seus filhos que clamam dia e noite (cf Lc 18,7-8). O sangue redentor do Senhor Jesus e a potência da sua ressurreição cancelaram a condenação do pecado e nos garantiram o céu. A justiça contra o adversário foi realizada. É preciso, agora, acolhermos isso de coração aberto e revestirmo-nos desta justiça da Cruz. E aqui está o motivo por que esta parábola termina de forma tão enigmática: “…O Filho do homem, porém, quando vier, encontrará a fé sobre a terra?” (Lc 18,8). No próximo número da nossa revista refletiremos sobre isso.

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O.Cist,

Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

2024: O Ano da Oração

Como preparação ao Jubileu de 2025, o Papa Francisco instituiu o ano de 2024 como Ano da Oração. Será um tempo propício de preparação, pois o jubileu deve nos fazer experimentar a misericórdia de Deus, a gratuidade do seu amor, a reconciliação com os inimigos, a construção da paz, a partilha dos bens e tantas e tantas outras coisas que estão contidas no Sermão da Montanha (Mt 5-7). Ao mesmo tempo que a oração nos coloca na sintonia de Deus, a Palavra dele nos faz rezar corretamente.

Em todas as religiões existe a oração. Qual é a especificidade da oração cristã? Todos os movimentos religiosos desde os tempos pré-históricos manifestam o ser humano em busca do infinito, do eterno. A experiência religiosa é fruto da capacidade de transcendência do ser humano. Podemos falar de religiosidade natural. Entretanto, a manifestação desta religiosidade aparece com o ser humano indo em busca do eterno e todo poderoso. Ela é ascendente. Este itinerário aparece como uma conquista e adulação feita ao “deus” buscado, aparece como instrumento de condicionamento do próprio “deus” aos projetos do adorador ou adulador. Busca-se a “deus” para que ele seja favorável aos projetos pessoais de quem o busca.

Não podemos deixar de ver nos cristãos, muitas vezes, que é desta maneira a “abordagem” de Deus na oração: “que Ele realize os meus projetos e os meus sonhos, pois, afinal, eu só desejo coisas boas e justas.” Muitas vezes promessas, votos, novenas de oração etc estão condicionadas à realização por Deus da minha vontade. A vontade de Deus, muitas vezes, sequer é considerada.

Jesus nos ensina verdadeiramente a orar. Quando nos ensina a chamar a Deus de Pai  (Abbá – papaizinho) nos coloca diante de Deus primeiramente numa atitude de total confiança. Uma confiança que não quer dizer que Deus irá realizar o que eu quero, mas o que Ele realizar e/ou permitir  é sempre gesto de amor. Chamar a Deus de Pai, significa que dirijo-me a alguém de quem não duvido do amor. Não existe a interposição: “se Deus verdadeiramente me ama, Ele fará isso ou aquilo”. Dirigir-se a Deus com esta interposição, significa acreditar no outro “pai”, o pai da mentira que convence o ser humano de que Deus não ama (cf Jo 8). O “pai da mentira” incute em nós o medo do Deus que é Pai. O Apóstolo Paulo nos ensina: “com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai. …Assim o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos orar como convém, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito: pois é segundo Deus que ele intercede pelos santos.” (Rm 8,15.26-27)

Como rezar como convém fora do Espírito de Jesus Cristo ressuscitado? Como rezar como convém fora do projeto de Deus manifestado plenamente em Jesus Cristo? Acima citei o Sermão da Montanha, pois é a imagem do homem novo, segundo Deus. Não é possível rezar como convém fora da vontade de Deus. Eis a resposta da pergunta formulada acima: Qual é a especificidade da oração cristã?  O cristão reza para fazer a vontade de Deus.  Sou eu que busco estar na sintonia de Deus e não querer que Deus entre na minha sintonia. A oração cristã é primeiramente descendente, pois rezar como convém implica, primeiramente, conhecer o projeto salvífico de Deus. Para tanto necessitamos da Revelação de Deus manifestada plenamente em Jesus Cristo. Em segundo lugar aparece a dimensão ascendente na qual iluminado pela Palavra busco vivenciar a Vontade de Deus. “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu.”

            Na Quaresma a Igreja nos dá como instrumento de combate espiritual a oração.  “E quando orardes, não sejais como os hipócritas…a fim de serem vistos pelos homens…Nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os pagãos, porque imaginam que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque vosso Pai sabe do que tendes necessidade antes de lho pedirdes…Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus.” (Mt 6,5.7;7,21) O intuito principal é que a oração nos leve a viver na vontade do Pai. No entanto, as armas da oração devem estar também acompanhadas das armas da esmola e do jejum.

Damos esmola a quem nos pede. Ninguém dá esmola a quem não se apresenta como necessitado. Entretanto, a esmola está muito mais voltada para o nosso benefício próprio do que para o necessitado. De fato, se queremos resolver problemas sociais e outras necessidades das pessoas, precisamos ter projetos e planos que possam realizar isso de maneira eficaz e na medida do possível, de forma permanente. A esmola é sempre emergencial.

O dinheiro, os bens materiais, dos quais o dinheiro é como que um símbolo, representam a segurança que desejamos ter em nossa vida. Ter é necessário para sobreviver. O “ter” vai crescendo em nós como segurança e projeto de vida. Não percebemos, mas, de repente, a segurança da nossa existência não está em Deus, mas nos bens que temos.

O “ter” também está ligado aos bens afetivos. Colocamos muitas vezes a nossa segurança nas pessoas, no afeto das pessoas. E por causa da busca das nossas seguranças afetivas, somos capazes de não entrar na vontade de Deus. Fazemos o que outro pelo qual temos afeto quer, não se importando se o querer do outro está fora do projeto de Deus. Seja pelos bens materiais, seja pelos bens afetivos, podemos nos distanciar da vontade de Deus. Buscando nossa segurança nos bens materiais e/ou afetivos, como poderia nossa oração estar na busca da sintonia de Deus?

Neste aspecto a nossa oração tem que ser acompanhada da esmola. Primeiramente tenho que ter consciência das minhas falsas seguranças materiais e afetivas.  Tenho, depois, de olhar para o outro com compaixão, não buscando a mim mesmo, mas buscando “ser para o outro”.  Assim como o dinheiro é símbolo do “ter”, dar esmolas, dar dinheiro, torna-se símbolo do buscar a segurança em Deus., Em gestos concretos vou experimentando a alegria de vivenciar os valores do Reino dos Céus. Estes gestos devem ser buscados, mesmo que signifiquem que estou “violentando” a mim mesmo. Aliás, quando experimento este sentimento, que é um sair de mim para olhar para o outro, começo a experimentar a ter “os mesmos sentimentos de Jesus” (cf. Fl 2,6-11)E é somente no Espírito de Jesus que a oração é verdadeira.  Jesus foi tentado neste aspecto da segurança material e afetiva, quando o diabo lhe diz para transformar a pedra em pão. A resposta de Jesus também nos fortalece: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.” (Mt 4,4)

Várias correntes da psicologia comprovam que instintivamente o ser humano é movido pelo principio do prazer.  Não está errado. É sabedoria de Deus. Na antiguidade correntes filosóficas oriundas do epicurismo tentaram colocar isso em prática como meta de felicidade. A busca do prazer pelo prazer é egoísta e não pode realizar a felicidade de ninguém. Possuímos em nossos dias muitas ideologias de felicidade que têm no seu núcleo o “é válido aquilo que me dá prazer”.  O prazer é identificado como felicidade. Podemos elencar muitos aspectos da nossa cultura hedonista que, na realidade, é uma idolatria.. Eis alguns ídolos do prazer do nosso mundo: dinheiro, fama, prestígio, status social, bens de consumo, sexo e pornografia, drogas, poder, violência, guerras….Enfim, o ídolo é aquilo que eu ponho no lugar de Deus, ainda que inconscientemente. Se Deus é felicidade, aquilo que me dá prazer e felicidade (ainda que momentânea e enganosa) é o meu “deus”. O povo de Israel no deserto do Sinai prefere o bezerro de ouro: um “deus” feito de acordo com os meus projetos de vida: prazer, riqueza, fertilidade do solo e da vida humana…

O básico do princípio do prazer no ser humano é a comida. Desde recém nascidos, ainda que inconscientemente, experimentamos o prazer em sermos alimentados com o leite materno. Isso não é errado. Faz parte da criação de Deus. Entretanto, como foi dito acima, o “princípio do prazer” vai crescendo de tal forma em nós que podemos fazer dele um deus. Claro que a idolatria nos afasta da vontade de Deus. Como podemos rezar verdadeiramente sendo escravos de tantos ídolos do prazer?

Assim como o dinheiro é um símbolo das nossas falsas seguranças, o alimento é símbolo daquilo que nos dá prazer.

A oração precisa ser acompanhada do jejum. Experimentando a nossa debilidade quando tocados naquilo que é o básico do princípio do prazer, reconhecemos as nossas escravidões e tendências que nos afastam da vivência da vontade Deus porque queremos fazer a nossa própria vontade. O jejum é um instrumento que pode nos fazer descobrir que buscamos a nós mesmos e não olhamos o sofrimento do outro. Toda idolatria está voltada para o culto de nós mesmos. Jesus foi tentado no aspecto idolátrico no que tange o ter-poder-prazer. Vender-se ao diabo é idolátrico, pois se trata de olhar somente para si mesmo. A resposta corajosa e amorosa de Jesus está centrada na vontade de Deus. Adorar a Deus significa fazer a vontade do Pai. Jesus ensina à Samaritana: “Vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e verdade, pois são tais adoradores que o Pai procura.” (Jo 4,23). Na mesma linha da verdade e da vontade de Deus, Jesus responde a Satanás: “Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e a ele só prestarás culto.”  (Mt 4,10)

A oração que não está acompanhada do espírito da esmola e do jejum corre o risco de esvaziar-se, pois no buscar a realizar os próprios planos, podemos não nos dar contas de que estamos nos afastando do projeto de Deus.

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O.Cist. – Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

Uma Igreja Sinodal em Missão

No último dia 28 de outubro foi encerrada a primeira sessão do Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade: comunhão participação e missão. No mesmo dia 28 de outubro foi publicado um RELATÓRIO SÍNTESE, UMA IGREJA SINODAL EM MISSÃO, da primeira sessão desta XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. Não se trata de um documento conclusivo, mas fiel ao espírito proposto neste Sínodo, torna-se manifesto alguns pontos discernidos que precisam ser aprofundados. De fato, o documento dividido em três partes (1. O rosto da Igreja Sinodal 2. Todos os discípulos, todos missionários 3. Tecer laços, construir comunidade) distribuídas em 20 tópicos, apresenta para cada tópico Convergências, Questões a aprofundar e Propostas.

Não me julgo capaz de fazer um comentário teológico-pastoral sobre os resultados desta primeira sessão, mas quero, aqui, partilhar algumas coisas que me tocaram e amadurecem-me no caminhar numa Igreja Sinodal.

Já no Documento Preparatório de 2021, a retomada da Igreja Povo de Deus, fiel ao espírito do capítulo segundo da Lumen Gentium, destacando aquilo que nos faz membros deste povo (um só batismo e um só e mesmo Espírito) e que é de importância capital, sem subestimar os dons, carismas e serviços à missão deste povo no mundo, nos preparava para o primeiro grande momento da ESCUTA. Escutar faz parte da espiritualidade de comunhão, sem a qual não se pode falar em sinodalidade. A Igreja, ainda que assim o pareça, não possui na sua natureza uma estrutura piramidal. Se quisermos aplicar-lhe uma forma geométrica, poderíamos dizer circular, onde todos têm sua participação e possuem dons e carismas específicos de serviço. Todos pudemos observar a disposição da Aula Sínodal em vários círculos de reflexão nas sessões plenárias.

Como bispo ao contemplar estas coisas não me sinto desvalorizado, pois a valorização da Igreja, Povo de Deus, dá sentido ao serviço para o qual fui escolhido estando na Igreja.  Sinto também que, assim como o capítulo segundo da Lumen Gentium foi retomado com vigor, não com menos vigor e veracidade foi retomado o capítulo terceiro da Constituição Dogmática Lumen Gentium: A Constituição Hierárquica da Igreja. Interessante que dentre as Convergências, questões a serem aprofundadas e propostas, aparece a necessidade de estabelecer as características de sinodalidade e colegialidade. Aparecem também indicações para que sejam estabelecidas relações e distinções entre uma Assembleia Sinodal e uma Assembleia Eclesial.

Voltando à temática da ESCUTA, nestes dias da Assembleia Sinodal apareceu um termo iluminado e que precisa ser mais explicitado: a conversação no Espírito. A Palavra de Deus e a oração de coração sincero, abrem o nosso ser para escutar o outro, compreendê-lo e discernir de que modo o Espírito Santo fala nele. Esta conversação entendo como algo dinâmico, interior e de conversão. Ainda que não concorde com o outro, ainda que o outro no seu modo de pensar e agir não esteja de acordo com a fé da Igreja, é preciso compreender o que realmente o outro sente.

Uma Igreja Sinodal é uma Igreja que, sem trair a sua natureza e missão, coloca-se num processo transformador pela ação do Espírito. A terceira parte do Relatório, Tecer laços, construir comunidade, é desafiadora, pois aborda perspectivas que me desafiam e deixam-me incomodado. Difícil para mim ser pastor na orientação dos missionários digitais e conduzir com maestria um discernimento eclesial e dar respostas exatas a questões abertas.  Se estamos num processo que se desenrola na história, nem tudo terá resposta satisfatória ou mesmo conclusiva com a segunda sessão do Sínodo.

Até mesmo após a conclusão deste Sínodo precisaremos de tempo e espaço para desenvolvermos caminhadas sinodais. Os anos da minha vida estão contados para Deus. Não sei se fará parte da minha missão conduzir todos os processos. Hoje estamos aqui, neste momento histórico salvífico, e necessitamos deixarmo-nos conduzir pelo Espírito. Cada um de nós é chamado por Deus para um serviço específico na Igreja. Ensina-nos Jesus que, como servos, devemos dizer após a missão ser concluída: “somos servos inúteis, fizemos somente o que deveríamos ter feito.”

Reproduzo aqui um trecho profundo e inspirador do Relatório, no seu epílogo, “Para prosseguir o Caminho”: “Como será isso?”, perguntava-se Maria em Nazaré (Lc 1,34) depois de ter escutado a Palavra. A resposta é apenas uma: ficar à sombra do Espírito e deixar-se envolver pelo seu poder… Adsumus Sancte Spiritus,”

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O. Cist. – Bispo diocesano

Categorias
Artigos Voz do Pastor

Leigas e Leigos “nem cá, nem lá”

Estamos vivendo os últimos dias do III Ano Vocacional no Brasil, “Vocação: Graça e Missão – Corações ardentes pés a caminho”. No mês de novembro, de modo especial, recordamos a vocação laical. Entre as solenidades de Cristo Rei 2017-2018, vivemos no Brasil o Ano do Laicato, animado pelas reflexões do documento 2015 da CNBB: Cristãos Leigos e Leigas na Igreja e na sociedade – Sal da terra e luz do mundo.

Prestes a terminar o Ano do Laicato – não me recordo quem –pediram-me para escrever algo sobre o legado do Ano Laicato. Abaixo segue um trecho do que escrevi.

A primeira coisa a destacar é a conscientização e reflexão sobre a vocação laical. O documento 105 da CNBB não trouxe novidades teológicas, e nem poderia. No entanto, os vários eventos nas dioceses trouxeram consigo a afirmação – talvez um pouco esquecida – que ser leigo e leiga na Igreja, não é uma “sub vocação”, mas uma vocação plena e autônoma como a vocação aos ministérios ordenados e à vida consagrada. O grande relevo que o documento 105 da CNBB dá à vocação laical – relevo, não novidade – é o leigo como sujeito eclesial. A tradicional regra gramatical nos ensina que sujeito é aquele que pratica a ação. A vocação laical não é passividade, mas atuação concreta e própria na obra da evangelização. Esta é a missão da Igreja. Leigos e leigas, ministros ordenados, consagrados e consagradas, todos somos sujeitos eclesiais que, dentro do nosso âmbito vocacional, somos chamados atuar concretamente na obra da evangelização, com a autonomia – não independência arbitrária – que se manifesta numa verdadeira espiritualidade de comunhão e participação.

                Ligado a este primeiro ponto fundamental está a responsabilidade dos vocacionados leigos e leigas na obra evangelizadora da Igreja.  Como sujeitos eclesiais, necessitam (ou melhor, a missão da Igreja necessita) participar ativamente nos vários âmbitos da comunhão eclesial. (cf. Doc 105 CNBB 136-160)

                O Ano do Laicato, na sua reflexão teológica, colocou em foco o específico da vocação laical: a sua índole secular. De modo particular, é no mundo que os leigos devem vivenciar a ação transformadora do evangelho. A presença da identidade cristã católica precisa incrementar a sua presença profética e evangelizadora em tantos âmbitos da nossa sociedade e nos modernos areópagos. (cf. Doc 105 CNBB 241-273.) A organização do laicato com os Conselhos de Leigos ou algo similar, deveria ajudar no diálogo com as realidades da sociedade e ação transformadora na sociedade. Trata-se de uma presença profética.

Por último, não exatamente em último lugar, este Ano deixa como legado o sentimento da necessidade da formação espiritual, catequética, teológica e específica para os vários âmbitos e “areópagos modernos”. Tanto para a ação transformadora no âmbito eclesial, como no mundo é necessário formar-se.  É preciso caminhar para um aprimoramento na formação do laicato. Não podemos simplesmente ser uma “Igreja em saída”. Temos que sair com uma identidade, estar presente no mundo com o odor de Cristo.

Um legado importante para a nossa diocese do Ano do Laicato foi a formação do Conselho Nacional de Leigos – CNLB Guarulhos, que tem promovido, especialmente, a formação para a missão da vocação laical na sociedade.

Entretanto, aproximando-se da solenidade de Cristo Rei, dia de celebrar a vocação laical, percebo um desinteresse dos leigos – sem generalizar, por favor – na missão ad intra e ad extra em nossas comunidades. Entre a pandemia e o período pós pandemia, foram sendo manifestados abandono em muitas comunidades dos ministérios exercidos com tanto vigor anteriormente. É verdade que pandemia nos desestruturou em tantos aspectos, mas a fé que vence o mundo sempre nos coloca em pé, quando a buscamos como força no caminhar.

Temos vários leigos “nem nem”. Alguns resolveram “dar um tempo” simplesmente na missão assumida em força do batismo e diante de Deus nos ministérios laicais importantes para a obra da evangelização. Até mesmo nas celebrações dominicais aumentou o absenteísmo. E o que dizer dos momentos formativos para o exercício dos ministérios dentro das comunidades? Os grupos de rua esvaziaram-se. Temos irmãos e irmãs que estão assumindo várias missões nas comunidades em virtude da omissão dos chamados e capacitados que estão “dando um tempo”. Estes são os leigos e leigas “nem cá”.

As formações do CNLB Guarulhos, que tanto tem trabalhado para a vivência da índole secular da vocação laical, têm tido pouca adesão.  Alguns, para não dizer muitos, dos agentes das pastorais sociais – que manifestam um aspecto preponderante da Igreja em saída – abandonaram o seu trabalho e a formação. Em várias paróquias várias pastorais sociais que existiam antes da pandemia, deixaram de existir. Tenho certeza de que estes irmãos e irmãs buscam viver no mundo conforme os valores do evangelho, mas vão aos poucos perdendo a identidade eclesial. Estes são os leigos e leigas “nem lá”.

Este não é uma bronca de pastor. Trata-se de uma reflexão que brota de mim após passar alguns dias pensando sobre o que escrever neste mês para a Folha Diocesana.

Dom Edmilson Amador Caetano, O. Cist.Bispo diocesano