Diocese de Guarulhos

SÃO PAULO - BRASIL

“O Senhor fez em mim maravilhas.” (Lc 1,49)

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2024: O Ano da Oração

Como preparação ao Jubileu de 2025, o Papa Francisco instituiu o ano de 2024 como Ano da Oração. Será um tempo propício de preparação, pois o jubileu deve nos fazer experimentar a misericórdia de Deus, a gratuidade do seu amor, a reconciliação com os inimigos, a construção da paz, a partilha dos bens e tantas e tantas outras coisas que estão contidas no Sermão da Montanha (Mt 5-7). Ao mesmo tempo que a oração nos coloca na sintonia de Deus, a Palavra dele nos faz rezar corretamente.

Em todas as religiões existe a oração. Qual é a especificidade da oração cristã? Todos os movimentos religiosos desde os tempos pré-históricos manifestam o ser humano em busca do infinito, do eterno. A experiência religiosa é fruto da capacidade de transcendência do ser humano. Podemos falar de religiosidade natural. Entretanto, a manifestação desta religiosidade aparece com o ser humano indo em busca do eterno e todo poderoso. Ela é ascendente. Este itinerário aparece como uma conquista e adulação feita ao “deus” buscado, aparece como instrumento de condicionamento do próprio “deus” aos projetos do adorador ou adulador. Busca-se a “deus” para que ele seja favorável aos projetos pessoais de quem o busca.

Não podemos deixar de ver nos cristãos, muitas vezes, que é desta maneira a “abordagem” de Deus na oração: “que Ele realize os meus projetos e os meus sonhos, pois, afinal, eu só desejo coisas boas e justas.” Muitas vezes promessas, votos, novenas de oração etc estão condicionadas à realização por Deus da minha vontade. A vontade de Deus, muitas vezes, sequer é considerada.

Jesus nos ensina verdadeiramente a orar. Quando nos ensina a chamar a Deus de Pai  (Abbá – papaizinho) nos coloca diante de Deus primeiramente numa atitude de total confiança. Uma confiança que não quer dizer que Deus irá realizar o que eu quero, mas o que Ele realizar e/ou permitir  é sempre gesto de amor. Chamar a Deus de Pai, significa que dirijo-me a alguém de quem não duvido do amor. Não existe a interposição: “se Deus verdadeiramente me ama, Ele fará isso ou aquilo”. Dirigir-se a Deus com esta interposição, significa acreditar no outro “pai”, o pai da mentira que convence o ser humano de que Deus não ama (cf Jo 8). O “pai da mentira” incute em nós o medo do Deus que é Pai. O Apóstolo Paulo nos ensina: “com efeito, não recebestes um espírito de escravos, para recair no medo, mas recebestes um espírito de filhos adotivos, pelo qual clamamos: Abba! Pai. …Assim o Espírito socorre a nossa fraqueza. Pois não sabemos orar como convém, mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis, e aquele que perscruta os corações sabe qual o desejo do Espírito: pois é segundo Deus que ele intercede pelos santos.” (Rm 8,15.26-27)

Como rezar como convém fora do Espírito de Jesus Cristo ressuscitado? Como rezar como convém fora do projeto de Deus manifestado plenamente em Jesus Cristo? Acima citei o Sermão da Montanha, pois é a imagem do homem novo, segundo Deus. Não é possível rezar como convém fora da vontade de Deus. Eis a resposta da pergunta formulada acima: Qual é a especificidade da oração cristã?  O cristão reza para fazer a vontade de Deus.  Sou eu que busco estar na sintonia de Deus e não querer que Deus entre na minha sintonia. A oração cristã é primeiramente descendente, pois rezar como convém implica, primeiramente, conhecer o projeto salvífico de Deus. Para tanto necessitamos da Revelação de Deus manifestada plenamente em Jesus Cristo. Em segundo lugar aparece a dimensão ascendente na qual iluminado pela Palavra busco vivenciar a Vontade de Deus. “Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu.”

            Na Quaresma a Igreja nos dá como instrumento de combate espiritual a oração.  “E quando orardes, não sejais como os hipócritas…a fim de serem vistos pelos homens…Nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os pagãos, porque imaginam que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque vosso Pai sabe do que tendes necessidade antes de lho pedirdes…Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos céus, mas sim aquele que pratica a vontade de meu Pai que está nos céus.” (Mt 6,5.7;7,21) O intuito principal é que a oração nos leve a viver na vontade do Pai. No entanto, as armas da oração devem estar também acompanhadas das armas da esmola e do jejum.

Damos esmola a quem nos pede. Ninguém dá esmola a quem não se apresenta como necessitado. Entretanto, a esmola está muito mais voltada para o nosso benefício próprio do que para o necessitado. De fato, se queremos resolver problemas sociais e outras necessidades das pessoas, precisamos ter projetos e planos que possam realizar isso de maneira eficaz e na medida do possível, de forma permanente. A esmola é sempre emergencial.

O dinheiro, os bens materiais, dos quais o dinheiro é como que um símbolo, representam a segurança que desejamos ter em nossa vida. Ter é necessário para sobreviver. O “ter” vai crescendo em nós como segurança e projeto de vida. Não percebemos, mas, de repente, a segurança da nossa existência não está em Deus, mas nos bens que temos.

O “ter” também está ligado aos bens afetivos. Colocamos muitas vezes a nossa segurança nas pessoas, no afeto das pessoas. E por causa da busca das nossas seguranças afetivas, somos capazes de não entrar na vontade de Deus. Fazemos o que outro pelo qual temos afeto quer, não se importando se o querer do outro está fora do projeto de Deus. Seja pelos bens materiais, seja pelos bens afetivos, podemos nos distanciar da vontade de Deus. Buscando nossa segurança nos bens materiais e/ou afetivos, como poderia nossa oração estar na busca da sintonia de Deus?

Neste aspecto a nossa oração tem que ser acompanhada da esmola. Primeiramente tenho que ter consciência das minhas falsas seguranças materiais e afetivas.  Tenho, depois, de olhar para o outro com compaixão, não buscando a mim mesmo, mas buscando “ser para o outro”.  Assim como o dinheiro é símbolo do “ter”, dar esmolas, dar dinheiro, torna-se símbolo do buscar a segurança em Deus., Em gestos concretos vou experimentando a alegria de vivenciar os valores do Reino dos Céus. Estes gestos devem ser buscados, mesmo que signifiquem que estou “violentando” a mim mesmo. Aliás, quando experimento este sentimento, que é um sair de mim para olhar para o outro, começo a experimentar a ter “os mesmos sentimentos de Jesus” (cf. Fl 2,6-11)E é somente no Espírito de Jesus que a oração é verdadeira.  Jesus foi tentado neste aspecto da segurança material e afetiva, quando o diabo lhe diz para transformar a pedra em pão. A resposta de Jesus também nos fortalece: “Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus.” (Mt 4,4)

Várias correntes da psicologia comprovam que instintivamente o ser humano é movido pelo principio do prazer.  Não está errado. É sabedoria de Deus. Na antiguidade correntes filosóficas oriundas do epicurismo tentaram colocar isso em prática como meta de felicidade. A busca do prazer pelo prazer é egoísta e não pode realizar a felicidade de ninguém. Possuímos em nossos dias muitas ideologias de felicidade que têm no seu núcleo o “é válido aquilo que me dá prazer”.  O prazer é identificado como felicidade. Podemos elencar muitos aspectos da nossa cultura hedonista que, na realidade, é uma idolatria.. Eis alguns ídolos do prazer do nosso mundo: dinheiro, fama, prestígio, status social, bens de consumo, sexo e pornografia, drogas, poder, violência, guerras….Enfim, o ídolo é aquilo que eu ponho no lugar de Deus, ainda que inconscientemente. Se Deus é felicidade, aquilo que me dá prazer e felicidade (ainda que momentânea e enganosa) é o meu “deus”. O povo de Israel no deserto do Sinai prefere o bezerro de ouro: um “deus” feito de acordo com os meus projetos de vida: prazer, riqueza, fertilidade do solo e da vida humana…

O básico do princípio do prazer no ser humano é a comida. Desde recém nascidos, ainda que inconscientemente, experimentamos o prazer em sermos alimentados com o leite materno. Isso não é errado. Faz parte da criação de Deus. Entretanto, como foi dito acima, o “princípio do prazer” vai crescendo de tal forma em nós que podemos fazer dele um deus. Claro que a idolatria nos afasta da vontade de Deus. Como podemos rezar verdadeiramente sendo escravos de tantos ídolos do prazer?

Assim como o dinheiro é um símbolo das nossas falsas seguranças, o alimento é símbolo daquilo que nos dá prazer.

A oração precisa ser acompanhada do jejum. Experimentando a nossa debilidade quando tocados naquilo que é o básico do princípio do prazer, reconhecemos as nossas escravidões e tendências que nos afastam da vivência da vontade Deus porque queremos fazer a nossa própria vontade. O jejum é um instrumento que pode nos fazer descobrir que buscamos a nós mesmos e não olhamos o sofrimento do outro. Toda idolatria está voltada para o culto de nós mesmos. Jesus foi tentado no aspecto idolátrico no que tange o ter-poder-prazer. Vender-se ao diabo é idolátrico, pois se trata de olhar somente para si mesmo. A resposta corajosa e amorosa de Jesus está centrada na vontade de Deus. Adorar a Deus significa fazer a vontade do Pai. Jesus ensina à Samaritana: “Vem a hora – e é agora – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e verdade, pois são tais adoradores que o Pai procura.” (Jo 4,23). Na mesma linha da verdade e da vontade de Deus, Jesus responde a Satanás: “Vai-te, Satanás, porque está escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e a ele só prestarás culto.”  (Mt 4,10)

A oração que não está acompanhada do espírito da esmola e do jejum corre o risco de esvaziar-se, pois no buscar a realizar os próprios planos, podemos não nos dar contas de que estamos nos afastando do projeto de Deus.

 

Dom Edmilson Amador Caetano, O.Cist. – Bispo diocesano

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